sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Tosse e outras metáforas da virtude e da morte

Após certo período de inatividade voltamos a discutir o Hellenismos nas páginas do Ta-Hiera. Sou do partido que acredita que em situações de perigo, ou ameaça a nossa vida, recebemos alguns estímulos e avisos para que nos cuidemos e possamos se não evitar os danos, ao menos reduzí-los. Essa é a perspectiva presente em muitos mitos, todavia neles em geral, os heróis optam por construir seus próprios caminhos e contrariar a Moîra, escolha que geralmente os conduz a catástrofes, mas em compensação, onde eles escrevem seus nomes e seus feitos nas páginas da glória. O que me interessa hoje, todavia, não são esses feitos, mas ao contrário, a forma como nosso corpo-mente responde a esses avisos de forma a sincronizar-se e receber o aviso como uma informação útil.

Estando adoecido nos últimos dias com um tosse demasiado grave, de repete me ative a certas metáforas que nos rondam a nos informam dos riscos aos quais estamos submetidos. As metáforas estão além do aspecto com o qual lidamos costumeiramente; são registros do corpo, do ritmo da vida, do forasteiro inesperado, e eventualmente, da língua em si. Se manifestam numa variedade diversa, do símbolo ao auspício, da mensagem ao silêncio. 

É bem sabido que no mundo helênico os deuses não fazem nada por nós; é Walter Otto quem nos esclarece sobre essa peculiar relação onde o devoto não pode pedir nada aos deuses, pois não é tarefa deles fazer nada por ninguém. No mundo helênico, é a presença a maior das graças concedida ao homem. O reconhecimento de sua nobreza e virtude  dos indivíduos os coloca em condições de estar com os deuses, ter a sua graça, e aí reside o mais sublime elemento dessa relação. Assim, não caberá aos deuses salvar o homem do perigo, mas antes, àqueles a quem eles tendem a ser mais bem quistos têm a vantagem, ou o mérito, de sua palavra como aviso, como dádiva.

Dádiva aqui se entende na própria acepção que lhe atribui o antropólogo Marcell Mauss, essa específica relação de reciprocidade que se organiza na tríade dar-receber-retribuir. As metáforas da vida e as metáforas da morte são os códigos disponíveis com os quais os deuses muitas vezes se manifestam e comunicam-se conosco. Não se trata de uma abstração, o que seria algo em síntese, pequeno; é em suma, acredito eu, um sistema sofisticado de comunicação com o qual muitas vezes, tendo em vista a imaturidade, a pressa, ou o simples desafinamento com aqueles que nos protegem. Os deuses oferecem as pistas para nossa preservação, e simplesmente as ignoramos; julgamos que só somos agraciados quando nossas preces e pedidos são atendidos, mas ignoramos o que Eles deliberadamente nos oferecem. 

Para os gregos antigos, a areté, a virtude, a excelência, é uma capacidade de realizar os feitos nobres. Se refere não apenas às habilidades da mente, ou como eles dizem, a areté do espírito, mas também à areté do corpo. A areté é a habilidade maior da preservação, do cuidado e da manutenção da vida. A areté do corpo e a areté do espírito são uma coisa só porque, para o homem grego, essas instâncias não são separadas. Não há corpo sem espírito, tampouco espírito sem corpo. É nesse ponto que tomo a tosse como metáfora da morte. 

Em um texto anterior onde explorava o lugar do cadáver nos ritos fúnebres coloquei que, para o homem grego, por vezes o corpo era mais importante que o espírito, sendo o espírito que de fato, para esses homens, animado pelo corpo. Revendo essa afirmação, acredito que uma correção seria necessária. Não se trata de uma primazia do corpo sobre o espírito, umas antes um embricamento entre essas instâncias sem a qual uma não pode ser sem que a outra também seja. Assim, como havia dito no parágrafo acima, a areté do homem é a areté da integridade, da excelência , a auto-preservação. 

Psiqué no templo do amor, de Edward J. Poynter

A palavra grega para espírito, grosseiramente resumindo e ignorando o aspecto-espectro maior sobre o qual o tema se desenvolve é psiqué. Psiqué também é o termo usado para respiração, sopro, como também pode ser entendido como borboleta. Ora, essas referências de uma forma muito distinta se comunicam e nos pode dar uma pista sobre as metáforas que venho discutindo. Assim como a borboleta, que passa por um processo de amadurecimento, reclusão, para enfim, alcançar voos mais altos, e "libertar-se", a respiração também é o movimento pelo qual o corpo, como instância articula entre ele mesmo e a mente, toma para si o que há disponível no ambiente externo para desenvolver o que há dentro e fora dele (corpo = lagarta; borboleta = psiqué/ato de respirar). 

Ao adoecer o corpo nitidamente dá sinais de seu processo de violação, e essa é uma concepção anterior ao próprio Hipócrates. A febre, a dor, a tosse, os fluídos como catarro e sangue, são sinais de que o corpo encontra-se ameaçado e precisa ser cuidado. Mais que sinais, entendo esses sintomas como metáforas da vida e da morte, símbolos disponibilizados para nós pelos deuses de que algo danoso está acontecendo, seja por processos naturais que precisamos suavizar, seja por situações de negligência ou violência. A tosse é a saída da psiqué, dessa parte da virtude sem a qual o corpo não funciona, afinal, ambos funcionam como um complexo entrelaçado.

A areté é também a preservação do corpo. O termo romano para este conceito é "virtus" do qual originaram as palavras virtude e virilidade. Virilidade para o romano é justamente o que para os gregos se manifesta na sua excelência, na sua areté do corpo, na força. Todo homem deve estar preparado para a guerra, e nesse prepara-se opera um duplo entendimento de que, se ao mesmo tempo é preciso estar completo e inteiro para a batalha, simultaneamente cada parte do corpo tem sua virtude: a virtude do olho é ver, do ouvido escutar, dos braços segurar a espada, do cérebro conceber planejar a melhor estratégia, do instinto perceber onde há perigo. Na batalha do corpo ocorre o mesmo. Os deuses prezam o homem valoroso; cuidar do corpo é possibilitar uma maior estadia com eles. É disponibilizar-se a possível presença deles. Assim, é preciso estar atento aos sinais, às metáforas da vida e da morte.

Eirene;

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