quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Os Ritos da Anthesteria

Fragmento do estudo do Karl Kerényi sobre Dioniso traduzido pelo Ordep Trindade Serra. Considerando a  inacessibilidade do livro e o seu estado fora de catálogo, reproduzimos aqui um trecho importante ao que se dedicam ao estudo da religião dionisíaca, em especial às Anthesterias, uma de suas celebrações mais importantes.

Os ritos da Anthesteria cumpriam-se nas cercanias do templo de Dioniso Limneu. Tucídedes declara expressamente que isso ocorria no segundo dia da festa, o único do ano em que o templo era aberto. Os três dias festivos caiam no décimo primeiro, décimo segundo e no décimo terceiro do mês. O primeiro dele se chama pithoígia "dia da abertura do píthoi", os grandes vasos de barro usualmente semienterrados com certeza, não eram, então carregados até o brejo, assim como não o eram em novembro, quando deles se retirado vinho para mistura e prova. No tempo da fermentação, esses vasos eram deixados abertos; depois, eram abertos - caso contrário todo tipo de coisa, até crianças, poderia cair neles. Se sua tampa era retirada nesse dia (na pithoigia) era-o em razão de um motivo religioso. No tempo de Plutarco e no seu círculo social, essa razão já não era compreendida. A explicação foi encontrada em textos micênicos das tabletas de Pilos. Aí, as almas dos mortos são chamadas de dpsoí "as sedendas". No ano em que com elas ficavam a morar Dioniso emasculado, eram sedentas as almas - mas não de águas e sim de vinho. A pintura de um lécito ático do século AEC mostra almas aladas, sobre a vista de Hermes, condutor das almas, enxameando ao redor de um pithos parcialmente enterrado, no dia da pithoígia, quando o mundo subterrâneo abria-se para a ascensão de Dioniso. Vê-se uma das almas a beber enquanto duas outras se afastam voando, satisfeitas. 
Atraídas pelo odor do vinho que se ergue dos pithoí abertos e se espalha por toda a cidade, as almas emergem do mundo subterrâneo. Ninguém, nem mesmo os escravos, era impedido de beber vinho nesse dia. Mesmo sendo este um dia de abertura - não só nas jarras de vinho, para atrair as almas, como também na festa, cujo dia principal, o décimo segundo, derivava o seu nome, khoés, das bilhas de vinho.

Com seus mundos patet, os romanos queriam dizer uma coisa muito simples: "quando o mundo está aberto, é como se as portas do tristes deuses subterrâneos se escancarassem". Seria um equívoco aplicá-lo literalmente à festa ateniense. O dia de Khoés era marcado por uma atmosfera erótica e pela presença de fantasmas, um fenômeno insólito, mas não humanamente impossível. Mesmo se não tivéssemos um outro exemplo disso, os testemunhos disponíveis mostram-no bem. 
Não cabe duvidar quanto à crença ateniense de que no dia de Khoés a cidade ficava cheia de fantasmas: a jornada seguinte - o treze de anthesterion, o "dia das marmitas", consagrado a Hermes e Dioniso - era inteiramente dedicado a apartar e apaziguar os espíritos. Segundo se supunha, o deus que os trouxera dos mundos subterrâneos os reconduzia para lá. Tornou-se proverbial numa exclamação que se lhes dirigia: "Fora, Keres, já não é mais anthesteria!". As marmitas, por causa das quais o dia veio a chamar-se Khýtroi, continham alimentos para a viagem das keres: vegetais cozidos e sementes, compondo um sacrifício a Hermes Ctonio e também - como tem sucedido desde tempos imemoriais até hoje na Grécia -  o repasto dos espíritos dos mortos. Com as cabeças pesadas de vinho, os fantasmas retornavam ao brejo, que era onde os atenienses os tangiam. De acordo com a norma trietérica, Dioniso permaneceria em cima da terra pelos próximos doze meses; de acordo com a norma ateniense, depois de um breve período ele era outra vez dividido: tornava-se duplo, presente ao mesmo tempo em cima e embaixo.

Referência

KÉRENYI, Karl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. Tradução de Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus, 2002. p.259-262.

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