domingo, 26 de julho de 2015

Os muitos "nós" do Helenismo

Dentre todas as religiões reconstruídas, quiçá o politeísmo helênico seja aquela mais complexa de ser pensada e distinguida de outros sistemas religiosos, sejam eles cristãos ou não, ocidentais, orientais ou que se pretendam globais. Isso porque a relação com o mundo helênico é ao mesmo tempo popular e impopular, no sentido de sua adesão e compreensão. É popular na medida em que nomes como Zeus, Atena, Apolo e Héracles são tão ou mais conhecidos no Ocidente do que outros espectros divinos como os Lares, Ogma, Gefjon e seres de outros panteões (isso para ficarmos apenas nos panteões de deuses europeus). Se essa popularidade é evidente, ela é também contrastada por algo que poderíamos chamar de conhecimento esvaziado, superficial, e dizemos isso na posição de especialistas ou mais propriamente, de dedicados ao exercício e estudo dessa variante específica do politeísmo. Essa avaliação do aspecto impopular como um conhecimento esvaziado e superficial relaciona-se mais propriamente ao conhecimento das particularidades e complexidades da experiência religiosa do que a uma valoração sobre o caráter de eficácia ou não. 

O propósito desse ensaio é atualizar e aprofundar um texto anteriormente escrito por mim sobre os vários sujeitos que configuram o cenário do helenismo em seu sentido lato. Argumento aqui em favor do helenismo como categoria polissêmica, ou seja, percebida e construída de modos diferentes por muitos sujeitos; de modo paralelo, os sujeitos que se engajam nessas significações também são múltiplos, têm interesses e motivações variadas.
 
Polissemia
 
O Helenismo é polissêmico porque diz respeito a um domínio muito amplo de práticas, coisas e valores, não se restringindo apenas à religião praticada pelos helenos. Pode ser usado para referir à presença de personagens da cultura e sociedade dos gregos antigos (fala-se assim de período helenístico, de arte helênica, mitologia grega/helênica, e todo o folclore presente em contos populares, músicas, danças de períodos mais recentes) bem como à penetração desses referenciais no mundo contemporâneo e as ‘contaminações’ advindas daí ( especial ente os produtos da cultura de massa como Xena, Héracles, Guerra de Titãs, Piercy Jackson) e o intenso processo de atualização e recontar disso que podemos chamar (ou não) de “tradição helênica.” Nesse texto pretendo mais esclarecer como vejo esse conceito sendo operado do que defini-lo. Nesse sentido, minha posição deve ser equiparada a de um leitor do helenismo, simultaneamente próximo e distante, dentro e fora, tendo em vista que tenho circulação em alguns desses domínios, e em outros não. A forma como eu os nomeio, e, por vezes, como tento defini-los, também não é acabada, ao contrário, é pessoal, parcial e transitória, e assumo as consequências desse tipo de colocação como uma forma de responsabilizar-me pelo tipo de conhecimento que venho tentando construir.

Reconstrucionismos

Usualmente o reconstrucionismo é colocado em um patamar de rigidez e saudosismo que, na condição de devoto e curioso, não consigo ver de forma concreta. Antes, o reconstrucionismo parece ter mais a ver com um projeto de futuro do que com uma fuga ao passado. Ainda assim, formular isso é difícil tendo em vista que o modo como lemos o tempo é, por vezes, simplista e inerte, ignorando aspectos dinâmicos e cíclicos – e cíclicos aqui quer dizer não que eventos se repetem incessantemente, mas que os referenciais que usamos são constantemente reapropriados e produzem mudanças e transformações nas formas como nos relacionamos com o sagrado, com as pessoas, com o mundo. De modo objetivo quero dizer que o reconstrucionismo é uma vertente que dialoga com um momento histórico específico e o traduz nos tempo contemporâneo. Não se presume uma continuidade através de tradições mágicas ou religiosas (no mainstrean ou no segredo); ao contrário, a história e o povo são (ou deveriam ser) pensados como processos no tempo e a partir daí elege-se aspectos que se pensa como necessários de serem expressos a partir da experiência religiosa. Isso, todavia, traz algumas questões: onde estão os deuses? Eles são os mesmos dos tempos de Homero? E as outras modalidades de culto? Como lidar com a diferença não só temporal, mas também espacial? Longe de trazer respostas, essas são perguntas que venho fazendo a mim mesmo e aos meus colegas dentro do RHB na tentativa de construir alternativas que sejam responsáveis com o que se sabe da religião como praticada na Antiguidade Clássica, mas também condizentes com nossas expectativas e aparato no presente.

Mesmo o reconstrucionismo não é um objeto acabado. Ao contrário, sobre isso que mencionei no parágrafo acima como “eleger aspectos que se pensa necessários”, operam-se intervenções e adaptações. Assim, diferente da antiguidade, o reconstrucionismo helênico (ao menos como praticado no RHB e em alguns outros grupos, como a Hellenion) é pan-helênico. Dessa forma, é bastante diferente dos reconstrucionistas celtas, por exemplo, que agrupam-se em nichos de acordo com regiões geográficas, linguísticas e culturais: gaélicos, gauleses, celtinéricos, galaicos, entre outros. Se para estes o aspecto geográfico parece ser preponderante sobre o temporal, no helenismo o tempo ocupa uma dimensão bem mais significativa na forma de organizar a religião. O reconstrucionismo helênico é um produto inacabado na medida em que ele também é múltiplo, já que usamos a expressão parar chamar não só aqueles que se dedicam ao culto arcaico e clássico, mas também os alexandrinos, que estabelecem para si um recorte temporal e espacial distinto (o período helenístico, após a morte de Alexandre o Grande, tomando todo o território desde a Macedônia até o Egito e a profusão de fenômenos que essas relações históricas desencadearam sobre o povo e a religião).

Helenismo como outras religiões
O Helenismo é tomado como experiência religiosa não apenas dentro dos muitos reconstrucionismos. A religião assume valores e possibilidades distintas, por exemplo, para recons e nativistas. Por religião nativa me refiro às experiências de pessoas que, tendo nascidas em território étnico, exercem uma prática religiosa que se pressupõe como endógena e originária. De modo mais específico, falo assim dos gregos que se percebem como helenos e praticam o politeísmo helênico. No nativismo percebo com os signos as vezes são manuseados de formas diferentes de modo que, se por um lado ideias como “terra”, “sangue”, “família” e “tradição” ocupam um lugar importante para definir quem é ou não heleno, o modo como as práticas são ritualizadas é um pouco menos rígido (mas não menos cerimonioso) do que é para um reconstrucionista ou, por vezes, um heleno eclético.
 
Outro “fenômeno matrioska”, se me permitem usar essa imagem, é o revivalismo. De modo geral entendido como um exercício saudosista de instituir no tempo presente um modo de vida que é característico de um momento anterior no passado, me parece que esse não é um território tão firma quanto se pensa. Percebo um amplo conjunto de práticas serem depositadas nessa caixa, práticas essas que dizem respeito desde a construção de vilas e comunidades autônomas que vivem sobre essa possibilidade anacrônica, até momentos ritualizados de lazer onde se desenvolvem jogos e encenações, como batalhas épicas e duelos entre representações de grupos rivais. 

Para neopagãos de modo geral o Hellenismos assume outros formatos, ainda que não se possa deixar de ter em mente que o substrato é o mesmo. E acreditem, para alguém com minha formação, é muito difícil falar em essência de qualquer coisa que não perfumes, mas talvez essa seja uma boa metáfora para se pensar como o helenismo é apropriado, ainda no campo da religião, por outros sujeitos: neopagãos ecléticos, bruxos (e as muitas variantes dentro disso), além de tradições particulares. Sobe esses não tenho tanto fundamento, de modo que prefiro ficar na colocação genérica de que, a religião é quase sempre subsumida ao culto dos deuses, e ainda assim, sob formatos estrangeiros, não exatamente helênicos. Isso quer dizer tanto que os festivais não são exatamente os gregos, mas de algum calendário genérico (como os sabás e esbás de origem wiccaniana) e práticas cotidianas também podem ser dotadas de outras regras e etiquetas que não aquelas registradas pela literatura clássica.

Helenismo fora da religião
Há ainda todo um espectro de apropriações do helenismo que se localiza fora do eixo religioso. Diz respeito às pessoas que se relacionam ao helenismo como campo de estudos (os acadêmicos) ou como área de interesse (o que eu tenho chamado de fetichistas, ou seja, pessoas que estabelecem para com o Helenismo uma relação icônica e não devocional, seja pelo apreço que têm para com a mitologia, literatura, história, enfim).

Atando os nós
 
Tanto dentro como fora do eixo religioso essa classificação e modos de operação esboçados por mim são mais ideais do que concretos, de modo que eles podem se encontrar, se misturar e se disseminarem de modos variados. Assim, mesmo no campo do reconstrucionismo, uma pessoa que tome os deuses como arquétipos, por exemplo, pode ter essa perspectiva lida como uma região de transitividade entre o helenismo como campo de estudos e o helenismo como religião orientada; em todo caso, prevalecem as fusões, interconexões e aproximações. 

Esses processos de coocorrência e encontro não têm, para mim, nenhum valor menor, ao contrário, são evidências da intensa criatividade e dinâmica que é a religião enquanto experiência humana para com seres de outros domínios (antepassados, deuses, daemons, heróis, enfim). Se o helenismo é em si diverso isso é também uma evidência do seu potencial e força. Evidente que como sujeitos que buscam produzir diferenças e distinguir-se frente a outros, também estabelecemos estratégias de distinção e separação, mas isso faz parte de um domínio político que não é de todo aquém a essa diversidade, ao contrário, a confirma. Quando dizemos “nós”, estamos falando de mais pessoas do que podemos supor, mas ao mesmo tempo, limitando. É uma ambiguidade que precisa ser refletida. Cabe a cada um, no seio de suas práticas e grupos, responsabilizar-se pelos nós que cria e pelos vínculos que estabelece.

Eirene!

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